Contrato de Gaveta e Imissão na Posse: A Prevalência Inconteste do Título Registral em Face de Acordos Informais
- Fabio Nascimento
- 1 de abr.
- 10 min de leitura

Enfrentamos com frequência, a colisão entre a posse exercida por um ocupante amparado em um "contrato de gaveta" e o direito de propriedade de um terceiro que adquiriu o imóvel de forma regular, após a consolidação da propriedade pelo credor fiduciário. Esta tensão suscita debates, notadamente acerca da eficácia dos negócios jurídicos perante terceiros.
A ação de imissão na posse detém natureza eminentemente petitória. Ela se alicerça no direito de propriedade (jus possidendi), ou seja, no título dominial devidamente registrado, e não na posse anterior do autor (jus possessionis). Quem a ajuíza é, tipicamente, o proprietário que busca obter a posse direta do bem pela primeira vez, contra quem o ocupa sem justo título oponível.
É crucial entender a eficácia restrita do "contrato de gaveta". Este ajuste, embora gere obrigações válidas entre as partes que o celebraram (cedente e cessionário), opera efeitos primordialmente inter partes. Ele não possui, via de regra, o poder de vincular terceiros que não participaram da avença, como é o caso do credor fiduciário ou do subsequente adquirente que obtém a propriedade por meios legais.
É crucial entender a eficácia restrita do "contrato de gaveta". Este ajuste, embora gere obrigações válidas entre as partes que o celebraram (cedente e cessionário), opera efeitos primordialmente inter partes. Ele não possui, via de regra o poder de vincular terceiros que não participaram da avença, como é o caso do credor fiduciário ou do subsequente adquirente que obtém a propriedade por meios legais.
No âmbito do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), regulado pela Lei nº 9.514/97, a legislação é clara ao condicionar a validade e eficácia da cessão de direitos sobre o imóvel alienado fiduciariamente à anuência expressa do credor fiduciário. A ausência dessa concordância formal impede que a transferência de direitos pelo devedor fiduciante seja oponível ao credor e, por conseguinte, a quem dele adquirir a propriedade consolidada.
Contrapondo-se à precariedade do "contrato de gaveta" perante terceiros, ergue-se a robustez do direito à posse que emana diretamente do título de propriedade devidamente registrado. A aquisição da propriedade formalizada pelo registro imobiliário, confere ao novo titular o direito de buscar a posse direta do bem, inclusive por meio da ação de imissão na posse, muitas vezes com pedido de liminar.
A frequente tentativa de utilizar o "contrato de gaveta" como "justo título" para fins de usucapião ordinária, como defesa em ações petitórias, justamente por sua natureza informal, pela ausência da indispensável anuência do credor fiduciário e pela falta de registro, revela-se inadequada para configurar o "justo título" exigido por lei, especialmente quando oposto ao terceiro adquirente de boa-fé que consolidou a propriedade conforme os ditames legais e promoveu o devido registro.
Diferentemente das ações possessórias (reintegração, manutenção), que visam proteger a posse como fato em si (jus possessionis), a imissão na posse fundamenta-se no direito de propriedade (jus possidendi). O autor da ação não precisa provar que já teve posse anterior; basta demonstrar que é o titular do domínio e que o réu exerce posse injusta sobre o bem.
Imagine a situação de alguém que arremata um imóvel em leilão judicial ou extrajudicial: essa pessoa adquire a propriedade, mas nunca teve a posse física. A imissão na posse é o instrumento jurídico adequado para que ela, munida de seu título registrado (a carta de arrematação, por exemplo), possa ingressar no imóvel ocupado por outrem. A discussão central não gira em torno de quem tem a "melhor posse" no sentido fático, mas sim de quem detém o título que legitima a posse.
Para evidenciar a distinção entre a ação petitória da imissão na posse e as ações possessórias, vejamos:
“O nome poderia levar o leitor a pensar que se trata de ação possessória. Mas não é: a ação é petitória, fundada não na posse, mas na propriedade. A ação de imissão de posse é aquela atribuída ao adquirente de um bem, que tenha se tornado seu proprietário, para ingressar na posse pela primeira vez, quando o alienante não lhe entrega a coisa. Essa ação nunca poderia ter natureza possessória, porque o seu autor não tem nem nunca teve posse. O seu objetivo é obtê-la pela primeira vez, quando se obtém a propriedade da coisa. Aquele que compra um bem tem o direito de o ter consigo. Se o vendedor não o entrega, a ação adequada não será possessória, porque o adquirente não quer a coisa para si por ser um possuidor esbulhado ou turbado, mas por ter adquirido a propriedade e ser o novo dono da coisa”.
“São três as ações ou interditos possessórios, previstos em nosso ordenamento jurídico: a ação de reintegração de posse, a de manutenção de posse e o interdito proibitório. O que as caracteriza é a pretensão do autor, de recuperar, conservar ou proteger a posse, objeto de agressões ou ameaças.
A ação, para ser qualificada de possessória, tem de estar fundada na posse do autor, que foi, está sendo, ou encontra-se em vias de ser agredida. Não interessa se o bem é de propriedade dele, mas se ele tem ou teve posse, e se ela lhe foi tirada de forma indevida”. (Gonçalves, Marcus Vinicius Rios Direito processual civil / Pedro Lenza; Marcus Vinicius Rios Gonçalves. – Esquematizado – 11. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020, 952 e 953)
A injustiça da posse do réu, nesse contexto, não se confunde necessariamente com posse violenta, clandestina ou precária no sentido clássico, mas sim com a ausência de um título jurídico que justifique sua permanência no imóvel frente ao proprietário.
O "contrato de gaveta", embora comum na prática negocial brasileira, especialmente em relação a imóveis financiados, opera sob o princípio da relatividade dos efeitos contratuais. Isso significa que as cláusulas e obrigações pactuadas entre o mutuário original (cedente) e o terceiro (cessionário) vinculam apenas essas duas partes. É como se duas pessoas combinassem algo em uma sala fechada; quem está do lado de fora não é afetado por esse acordo. O credor fiduciário (o banco, por exemplo), que não participou nem anuiu com essa cessão informal, não pode ser obrigado a reconhecê-la. Da mesma forma, o terceiro que, posteriormente, adquire a propriedade desse mesmo credor (após a retomada do bem por inadimplência do mutuário) também não está vinculado aos termos do "contrato de gaveta". Para esse novo proprietário, o cessionário é, juridicamente, um estranho ocupando o imóvel sem um título que lhe seja oponível. A validade do contrato entre as partes não se irradia para atingir a esfera jurídica de terceiros alheios à negociação.
A Lei nº 9.514/97, que estrutura o SFI e a alienação fiduciária de imóveis, é taxativa em seu artigo 29 ao dispor que “O fiduciante, com a anuência expressa do fiduciário, poderá transmitir os direitos de que seja titular sobre o imóvel objeto da alienação fiduciária em garantia, assumindo o adquirente as respectivas obrigações”. Essa exigência não é mera formalidade; ela visa proteger a garantia do credor, que concedeu o financiamento com base nas condições pessoais e financeiras do mutuário.
Permitir a cessão irrestrita e sem controle colocaria em risco a própria estrutura do sistema de financiamento. É como emprestar um bem valioso a alguém de confiança e descobrir que essa pessoa o repassou a um terceiro desconhecido, sem sua permissão. A consequência jurídica da ausência dessa anuência é clara: a cessão realizada por meio do "contrato de gaveta" é ineficaz perante o credor fiduciário. Essa ineficácia se estende ao terceiro que adquire a propriedade diretamente do credor fiduciário antes da quitação do financiamento. Em relação a necessidade e os efeitos da falta de anuência do credor fiduciário na cessão de direitos pelo fiduciante:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PROCESSO CIVIL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. CESSÃO DE DIREITOS. CONTRATO DE GAVETA. JULGAMENTO CITRA PETITA. INOCORRÊNCIA. IMÓVEL. OBRIGAÇÃO DE TRANSFERÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. ANUÊNCIA DO CREDOR FIDUCIÁRIO. EXIGÊNCIA. PRECARIEDADE. (...) 2. O devedor fiduciante não pode celebrar, sem prévia e expressa anuência do agente financeiro, a cessão ou transferência a terceiros, no todo ou em parte, de seus direitos e obrigações, bem como vender ou prometer à venda o imóvel, objeto do contrato, conforme prevê cláusula do contrato firmado entre as partes originárias, comumente denominado “contrato de gaveta”. 3. O acordo de transferência de direitos feito entre particulares, mediante procuração ou documento similar, não produz efeito capaz de excluir o devedor fiduciante da relação contratual com a instituição financeira, se esta não tomou conhecimento e não anuiu ao ajuste, não comportando, ademais, falar em obrigar o credor fiduciário a aceitar a alteração das condições avençadas à luz da legislação de regência. 4. É dever da pessoa maior e civilmente capaz ter conhecimento dos efeitos gerados a partir da prática de atos da vida civil (art. 5º do Código Civil). 5. Preliminar rejeitada. Negou-se provimento ao recurso. (TJ-DF 07127624820228070007 1913542, Relator.: FABRÍCIO FONTOURA BEZERRA, Data de Julgamento: 28/08/2024, 7ª Turma Cível, Data de Publicação: 16/09/2024)
Diametralmente oposta à fragilidade do pacto informal, temos a solidez do direito que advém do título de propriedade registrado. O registro imobiliário é a pedra angular do nosso sistema de direitos reais sobre imóveis, conferindo publicidade, segurança jurídica e presunção de propriedade.
Quando um terceiro adquire um imóvel retomado pelo credor fiduciário (seja por compra direta, seja por arrematação em leilão extrajudicial previsto na Lei nº 9.514/97) e leva seu título a registro na matrícula do imóvel, ele se torna o novo proprietário perante todos (erga omnes). Esse título registrado lhe confere o direito de usar, gozar e dispor do bem, e, crucialmente, de reavê-lo de quem quer que injustamente o possua ou detenha, conforme assegurado pelo artigo 1.228 do Código Civil de 2002.
A legislação especial (art. 30 da Lei nº 9.514/97) prevê mecanismos céleres para a imissão na posse do adquirente, reconhecendo a força do título e a necessidade de garantir a efetividade do direito de propriedade. A apresentação da matrícula atualizada, constando o nome do adquirente como proprietário, constitui prova robusta e, em muitos casos, suficiente para embasar a imissão na posse.
“Art. 30. É assegurada ao fiduciário, ao seu cessionário ou aos seus sucessores, inclusive ao adquirente do imóvel por força do leilão público de que tratam os arts. 26-A, 27 e 27-A, a reintegração na posse do imóvel, que será concedida liminarmente, para desocupação no prazo de 60 (sessenta) dias, desde que comprovada a consolidação da propriedade em seu nome, na forma prevista no art. 26 desta Lei.”
Julgado a respeito da força do registro imobiliário para fins de imissão na posse:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE IMISSÃO NA POSSE - IMÓVEL ARREMATADO EM LEILÃO JUDICIAL - PROPRIEDADE E REGISTRO DEMONSTRADOS - SUSPENSÃO DA AÇÃO DE IMISSÃO NA POSSE ATÉ O JULGAMENTO DA AÇÃO ANULATÓRIA EM CURSO PERANTE A JUSTIÇA FEDERAL - NÃO CABIMENTO - TERCEIRO ARREMATANTE DE BOA-FÉ. A imissão na posse é direito de quem detenha o domínio da coisa, sem nunca haver exercido a posse. O adquirente de imóvel em leilão público, levado a efeito em execução extrajudicial, nos termos do art. 37, § 2º, do Dec .-Lei nº 70/66 e o art. 30 da Lei 9.515/97, tem direito à imissão na posse do bem, desde que tenha procedido ao registro da aquisição no respectivo Cartório de Registro de Imóveis. Incabível a suspensão da ação de imissão de posse até o julgamento de ação anulatória na qual se discute eventual nulidade na arrematação, uma vez que as alegações de prejudicialidades externas não podem interferir nos legítimos direitos do terceiro adquirente de boa-fé. (TJ-MG - AI: 10000205545163002 MG, Relator.: Baeta Neves, Data de Julgamento: 31/08/2022, Câmaras Cíveis / 17ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 01/09/2022)
Para que a usucapião ordinária se configure, o Código Civil (art. 1.242) exige posse contínua e incontestada, por dez anos, com justo título e boa-fé. O ponto primordial aqui é a qualificação do "contrato de gaveta" como "justo título" oponível ao terceiro adquirente. Justo título, para fins de usucapião, é o ato ou negócio jurídico que, em tese, seria hábil a transferir a propriedade, mas que não o fez por algum vício sanável ou por não emanar do proprietário.
O "contrato de gaveta", no contexto da alienação fiduciária, padece de vício fundamental quando analisado sob a ótica do terceiro adquirente: a ausência da anuência do credor fiduciário, exigida por lei (Lei 9.514/97, art. 29). Essa ausência impede que o contrato seja considerado "justo" perante aquele que deriva seu direito do próprio credor fiduciário. A falta dessa condição impede que o contrato seja considerado "justo" para aquele que adquire o direito do próprio credor fiduciário. Além disso, a natureza clandestina da operação (não levada a registro e realizada à revelia do titular do domínio resolúvel) dificilmente se coaduna com a boa-fé objetiva exigida.
Pensemos em Carlos, que comprou um apartamento de Diana através de um 'contrato de gaveta' em 2010, sem a anuência do banco que financiou Diana. Carlos pagou Diana, mas Diana deixou de pagar o financiamento. O banco executou a garantia, consolidou a propriedade e vendeu o imóvel em leilão para Joana em 2023. Joana registrou sua escritura/contrato/carta de arrematação/adjudicação. Quando Joana tentou tomar posse, Carlos alegou usucapião ordinária, apresentando o 'contrato de gaveta' como 'justo título'. Contudo, essa alegação deverá ser rejeitada. Isso porque o contrato, realizado à revelia do credor fiduciário e sem registro, não constitui 'justo título' oponível a Joana, a terceira adquirente de boa-fé que obteve a propriedade pelos meios legais.
Assim, a ocupação pelo cessionário informal, mesmo que tolerada pelo devedor original, transmuta-se em posse injusta no instante em que o novo titular registral, legitimamente investido no domínio, manifesta sua pretensão de reaver o imóvel. A posse que talvez fosse "justa" na relação interna entre cedente e cessionário não ostenta essa qualidade perante o novo proprietário legalmente constituído. Acerca da inadequação do contrato de gaveta como justo título para usucapião ordinária contra o arrematante/adquirente:
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE USUCAPIÃO – ALIENAÇÃO DO MUTUÁRIO AO AUTOR ATRAVÉS DE CONTRATO DE GAVETA – IMÓVEL FINANCIADO COM RECURSOS DO SFH – INADIMPLÊNCIA DO AUTOR – CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE EM NOME DA CREDORA CEF – LEILÃO – ARREMATAÇÃO - SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO. Aquele que ocupa imóvel financiado, seja por contrato de gaveta, invasão, ou qualquer outro motivo, tem ciência de que terá que desocupá-lo em caso de inadimplemento contratual e posterior transferência da respectiva propriedade ao agente financeiro, não havendo que falar em usucapião, por ausência de animus domini. Se não bastasse, é entendimento assente no Superior Tribunal de Justiça a impossibilidade “de ser reconhecida usucapião no tocante à imóvel da Caixa Econômica Federal relacionado ao Sistema Financeiro de Habitação, por configurar-se nessa situação como bem público, tendo em vista a atuação da CEF como agente financeiro dos programas oficiais de habitação e órgão de execução da política habitacional, explora relevante serviço público, regulamentado por normas especiais previstas na Lei 4.380/64 . Precedentes da Terceira Turma desta Corte. 2. Agravo interno não provido.” ( AgInt no REsp 1483383/AL, Rel . Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 20/06/2017, DJe 27/06/2017). Ainda de acordo com a jurisprudência do STJ, a ocupação de bem público não gera direitos possessórios, mas mera detenção de natureza precária. (TJ-MT 10364434620208110002 MT, Relator.: SEBASTIAO BARBOSA FARIAS, Data de Julgamento: 05/10/2021, Vice-Presidência, Data de Publicação: 14/10/2021)
A ação de imissão na posse, de índole petitória, encontra amparo sólido no título de propriedade registrado em nome do adquirente. O "contrato de gaveta", por sua vez, opera efeitos restritos às partes contratantes e não pode ser oposto a terceiros, especialmente quando desprovido da anuência do credor fiduciário exigida por lei específica. A tentativa de utilizá-lo como justo título para fins de usucapião ordinária contra o novo proprietário registral esbarra em sua ineficácia perante este e na própria natureza da posse exercida pelo cessionário, sendo injusta frente ao titular do domínio.
Portanto, como demonstrado, a ordem jurídica prestigia a segurança e a publicidade conferidas pelo registro imobiliário. No embate entre a posse precária do cessionário, fundada em acordo informal e clandestino para o sistema, e o direito de propriedade do adquirente de boa-fé, munido de título registrado, a solução que se impõe, em nome da estabilidade das relações jurídicas, é a prevalência inconteste do direito do proprietário registral de ser imitido na posse do bem. A lei protege aquele que seguiu os trâmites legais para aquisição e registro da propriedade, garantindo a efetividade do direito real e a segurança do sistema como um todo.




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